A quem serve a apropriação do discurso da inovação social?


Este ensaio teórico parte do recente e exponencial interesse da academia sobre o tema da inovação social e suas variadas vertentes, analisando as nuances discursivas de forma crítica. Para além da óbvia justificativa de inovar para o bem coletivo, busca-se alinhar os discursos correntes às ideologias que os permeiam e aos contextos de sua gênese. Inovação social passa aqui por um escrutínio, senta-se no banco dos réus como ferramenta suspeita de falsear sua verdadeira natureza para objetivos não tão nobres quanto se insinua. 

A verdade é que nada perdura, nada é imutável ou perene eternamente, a mudança e a finitude são certezas na breve existência humana. O tempo de vida de um homem dá a falsa sensação de solidez, segurança e estabilidade, pois a incapacidade de conceber o tempo maior que si limita seu campo de análise. Se, por gerações os homens puderam se apoiar em convenções sociais tradicionais, é provável que estas tornaram-se verdades estáticas, embora sejam circunstâncias essencialmente mutáveis. Logo, a transformação é uma constante, seja em relações locais simples ou mesmo em estruturas sociais complexas. Se a mudança vai ocorrer não importa o que, cabe ao indivíduo ser sujeito passivo das circunstâncias, ou ser protagonista ativo da transformação. 

Porém, a consciência de sua capacidade de conduzir a transformação para interesses próprios não é a única força atuante na realidade, há forças desproporcionais e intransponíveis à resistência individual. A sociedade contemporânea é retrato de uma histórica luta desigual, que mantém as estruturas de poder mesmo com transformações inevitáveis. Os donos do poder conhecem as regras do jogo, manipulam contextos com maestria para a própria perpetuação no topo da cadeia alimentar. Logo, é lógico pensar que uma das formas de manipulação se dá por meio da apropriação de discursos e de ferramental insurgente. Se uns apostam na inovação social como fenômeno social transformador, a racionalidade dominante não perde tempo em analisar tal ameaça, cooptando o termo para seus próprios interesses. 

O discurso apropriado traveste-se como radical, mas por dentro encontra-se vazio de propósito, sem o impacto necessário à transformação. Ele passa a ser mais dócil, reformista em alguns pontos, e não chega nem perto de atender ao seu chamado original. Inovação social como discurso transformador desponta justamente por ser uma promessa de tempos melhores em meio à instabilidade paradigmática gerada pelo acúmulo de capital e pela desumanização. Mas o capital que causa os conflitos e desigualdades sociais é o mesmo que promete reinventar-se a cada crise, que eiva-se da culpa e veste-se de cordeiro. A análise não é tão complexa, basta uma leitura da inovação social com lentes divergentes, que demonstrem as nunces discursivas características do pensamento neoliberal indolente. A pergunta é simples: a quem serve tal inovação dita social? Quais os atores que mais ganham, ou menos perdem? Se uma determinada inovação resulta em mobilidade social, há que se verificar a extensão desta: o castelo de cartas rui com a transformação ocorrida? Se tremor da base não chega a ser sentido no topo, é porque não houve reconfiguração do poder, e no fim, tudo continua como sempre esteve. 

Uma reflexão válida aqui é quanto à natureza que constitui a inovação social, ela é sempre humana ou pode ser natural? Revoluções que alteraram profundamente as estruturas de poder podem ser associadas a fenômenos naturais que não se curvam ao poder construído socialmente. Terremotos, secas e pragas justamente por não serem manipuláveis ou facilmente previsíveis, são ocorrências com alto potencial de transformação, pois ao desestruturar o poder, facilitam a resistência ou a insurgência. 

A inovação social como fenômeno social com potencial transformador nos moldes radicais é quase impossível de acontecer, uma confluência de fatores complexos e imprevisíveis são necessários. Não basta que o paradigma hegemônico esteja em crise, nem mesmo que a grande massa adquira consciência e voz, o castelo de cartas do poder precisa ruir para então a transformação de base aflorar. E como se derruba o poder constituído se não por meios que ele mesmo não possa controlar? A pandemia do novo corona vírus é um raro momento na história onde poderes são reconfigurados e o jogo societal pode adquirir novos contornos. 

É possível de se observar dois lados opostos na gestão da pandemia com referenciais de agência distintos, resumidos na manutenção da economia ou na preservação da vida. O debate, sem aprofundamento ideológico prévio, resume-se ao individualismo em contraponto ao humanitarismo. O estado de necessidade e o caos gerado pela insuficiência de recursos para o tratamento das populações adoecidas faz com que discursos extremistas ganhem força. A fragilidade das instituições se acentua, bem como os discursos antidemocráticos. Há, contudo, um sentimento coletivo de empatia com as mortes que fez aflorar uma nova onda de solidariedade e altruísmo em todo globo. O cabo de guerra penderá para um dos dois lados, e o vencedor ditará a as novas regras do jogo do poder global. 

O ponto central aqui não é prever quem comporá a nova estrutura de poder, mas sim o que deve ser feito para que a nova estrutura de poder observe os direitos humanos conquistados e os princípios éticos e morais suficientes para a construção de uma nova realidade. É aqui que a inovação social entra como uma ferramenta de transformação democrática, ocupando o vazio do poder com novas formas institucionais de base, que devem ser fomentadas e incentivadas pluralmente. Os espaços devem ser ocupados por atores conscientes de seu potencial de transformação da realidade. As tecnologias devem servir à construção de um ambiente de democracia direta, buscando construir as decisões locais através do consenso ponderado da comunidade afetada. As novas instituições surgidas através de inovações sociais deverão buscar a autonomia e a emancipação dos sujeitos como fim último, onde a centralidade do ser humano nas relações e decisões é indiscutível. 

Logo, todo discurso indolente mercantilista deve ser combatido, a racionalidade hegemônica não pode ter espaço para se multiplicar. Para tanto, é imprescindível que os movimentos contra-hegemônicos ocupem todos os espaços possíveis, que todos os indivíduos se posicionem e demonstrem força de oposição. A lógica neoliberal vai tentar se apropriar dos discursos e ferramentas de oposição que a ameacem, mas cabe a cada indivíduo consciente de si a análise crítica da realidade. Empoderamento, sororidade, solidariedade, comunitarismo, sustentabilidade, economia solidária, autocrítica, posicionamento, consciência de classe são tanto ferramentas de combate e construção de coesão e resistência, como princípios basilares a qualquer tipo de inovação. Que nascerá social em essência e transformadora em seu fim.